Numa cidade onde falta quase tudo menos problemas, o dia 29 de Novembro de 2010 amanheceu mais suave para muitos, para quem esse dia foi mais do que mais uma terça-feira: foi o dia do tão esperado jogo entre o Real Madrid e o Barcelona.
A falta de energia elétrica, de água canalizada e de mata-bicho, os toca-tocas apertados, as estradas esburacadas e poeirentas, o calor intenso, o salário insuficiente e atrasado, as discarnas alheias .... tudo ficou mais leve para quem estava a contar as horas para ver o derby espanhol.
A verdade é que muitos nem sequer têm T.V. em casa. Outros têm um televisor mas não têm energia elétrica pública nem meios próprios para a produzir. Há ainda aqueles que possuem o aparelho e o gerador, mas falta-lhes o dinheiro para comprar o combustível. Azarados mesmo são aqueles que têm T.V., gerador e combustível, mas não têm assinatura do canal da antena parabólica que transmitirá o jogo. E o que dizer daqueles que têm T.V., energia elétrica e assinatura do canal desportivo, mas não querem ver o jogo em casa?
Uma partida de futebol é uma festa, e, como tal, não tem muita graça se for assistida em solidão. Por isso, começa cedo a caça aos bons lugares para assistir ao match nos poucos locais públicos que transmitirão o jogo. Às 19:30, não há mais cadeiras vagas, nem nos pubs mais chics nem nas barracas de quirintin. Se houvessem condições como nos países desenvolvidos, haveria menos convívio nesse sentido? Não, lá, nas terras onde faltam menos coisas, também se juntam para ver futebol.
´As 20:00, os espectadores estão mais do que prontos para o anseado espectáculo. Nada mais importa, além da emoção de ver o Messi, o Cristiano Ronaldo, o Villa, o Puyol e outros tantos a jogar à bola. Não importa se não almoçaram para poupar os poucos Francos para o jogo. Não importa se estão cansados e têm que assistir o jogo de pé. Nada tem importância nesses 90 minutos mágicos, em que se convive e se discutem teorias. Todos acham que têm a solução para a derrota.
Ah, como têm boa memória, esses espectadores e adeptos fervorosos de equipas de países tão longínquios! Sabem de cor e salteado os nomes dos treinadores, dos jogadores e das suas respectivas posições e trajectórias profissionais; sabem os placards de encontros passados, sugerem estratégias para virar o jogo, criticam lances mal feitos, chateiam-se quando as substituições não são feitas como deve ser... têm uma opinião firme e conceituada.
Seria maravilhoso se houvese energia elétrica para todos e se o canal televisivo nacional (TGB) transmitisse esse jogo tão popular para que todos o pudessem assistir sem pagar. Se fossem equipes nacionais a jogar num campeonato sério, num estádio em que os espectadores pudessem sofrer e torcer e gritar e chorar ao vivo. Se fossem discutidos lances de jogadores guineenses, talentosos e respeitados.
Também seria maravilhoso se as pessoas se lembrassem do nome dos deputados em quem votaram nas últimas eleições com a mesma facilidade com que se lembram do nome dos jogadores dos clubes estrangeiros. Se criticassem os governantes com o mesmo fervor e coragem com que criticam o Mourinho. Se conhecessem as reputações e trajectórias profissinais dos ministros como conhecem as dos jogadores. Se sugerissem soluções para “virar o jogo” e tirar o país da situação de derrota constante em que se encontra.
“O Real está a djugar muito mal” – disse um senhor, num pretuguês bem falado. O país está a ser governado muito mal. As substituições são mal feitas e os titulares, que ganham muitos milhões para fazer um bom trabalho, fazem pouco mais do que decepcionar. Os chefes da tabanka assistem à tragédia sem se abalar, como se não fosse nada com eles.
Enquanto isso, o povo e a população continuam, literalmente, no escuro. Uns assistem através de equipamentos de última tecnologia, gigantescas telas de plasma e sob o fresco do ar condicionado, enquanto outros se contentam com o relato pelo rádio a pilhas. O que têm em comum? Esse falso senso de pertença que é demonstrado ao ser adepto de um ou mais clubes estrangeiros e de nenhum clube nacional. “Nô n’ganha” , disse outro senhor, que se considera vencedor sem se dar conta que é, como todos nós, guineenses, um actual perdedor.
Escrito por um leitor do MIB News que se identificou pelo pseudónimo Hotor Katamuri. Envie também os seus textos e reflexões! Não precisa se identificar.